
Kyllma Bandeira de Melo*
Era para ser apenas uma pauta, entre tantas outras. Colher o máximo de informações, escritas e visuais, sobre a história de um rio cuja vida parece resignada ao fim. Belas imagens das chagas que apressam o último suspiro, na evaporação da última gota. No entanto, seu tormento tornou-se minha vergonha secreta. E uma viagem sem volta começou e se estendeu além das fronteiras do que foi dito e estabelecido, pelo ofício. E sem roteiro, nem produção, fez-se uma história que tecnologia nenhuma jamais terá a sensibilidade de captar. Essa é a nossa história, do rio e eu.
Tão fácil falar dos flagelos impostos à natureza, seja no conforto do barulho de uma sala de redação, seja na tranqüilidade do jardim de nossas casas, seja na fogueira de vaidades dos intelectuais liberais numa mesa de bar. Tudo é notícia, que vende. Tudo é assunto para falsa erudição. Afinal, no mundo contemporâneo, o que nos preocupa agora, já não será o mesmo daqui a pouco. Porque como diz Ítalo Calvino, na vida prática, o tempo é uma riqueza de que somos avaros. Nesta viagem, sem perceber, levei uma rasteira da realidade. E não senti dor ao cair. Meus sentidos renunciaram de imediato à conivência do ócio em que me escondia, na desculpa de já fazer o suficiente com a caneta e o microfone na mão. Perseverei na renúncia com espírito inquieto e a sutileza de mãos de aço. E ganhei sem pedir um outro olhar, um outro sentir, sobre o teu sofrimento. Para mim já não és manchete, nem assunto de matéria jornalística. É vida que se esvai. E agora posso dizer, ilesa aos filtros da hipocrisia, que sofro contigo.
Da nascente à foz, te vi raso. Bancos de areia surgem no teu leito como nódulos. Pensam que te alimentam, mas te engasgam com lixo (latas de óleo, caixas de sabão, restos de alimento, fraldas descartáveis), esgotos (das casas ribeirinhas, das cidades e até de hospitais), vísceras, carcaças e sangue dos matadouros. Também sugam das tuas entranhas a areia para a construção civil ou para a criação de balneários. Queimam nas margens a vegetação, e te desnudam. E assim te condenam ao assoreamento. Estes assalariados de propósitos. Lavas animais vivos e carregas os mortos, como um cemitério flutuante. Haverá um dique contra essa enxurrada de violência? Concordo com Deleuze e Guattari quando dizem que tudo o que pedimos é um pouco de ordem para nos proteger do caos. Neste caso, nada é mais doloroso e decepcionante do que boa vontade desprovida de atitude.
Na tua extrema generosidade, há anos nos abastece. Em deferência, nem nos damos ao trabalho de conhecer a tua geografia. Eis que a barbárie voltou, a humanidade definha e se julga imputável aos excessos. Cospe no copo que bebe. Torna também o comer e o respirar em doença. Cadê o peixe que tava aqui? O homem matou! O rio secou e os poucos que restam mal alimentam os que deles vivem. Estes, os pescadores, de imediato sofrem, porque como disse Oscar Wilde “diferente do prazer, a dor não usa máscaras”. Sua agonia é indelével: nas mãos calejadas, no rosto vincado, na pele castigada pelo sol. Muito mais nos olhos tristes de quem não consegue nem um cambo de peixe após horas de pesca.
É hora de agir! Despir a toga, o terno, o blazer, a batina, a farda. Vamos nos atrever a renunciar ao “jugo dos sentidos e dos hábitos que reduz certezas em probabilidades”, segundo David Hume. Mas se ainda é preciso ver para crer, eis o convite: siga o curso do rio Itapecuru. O roteiro da degradação se estende da nascente à foz. Mas se a longa jornada não convém, visite apenas as cidades ribeirinhas: Mirador, Colinas, Caxias, Aldeias Altas, Codó, Coroatá, Pirapemas, Itapecuru e Rosário. Então não restará descrença. A missão da ação compartilhada está na responsabilidade de todos: poderes constituídos e comunidades. Pois a vontade é a base das realizações. E não nos é mais dado o luxo de esquecer o que o poeta Ariosto bem alertou nas palavras de Orlando Furioso: Lo fece natura, e poi ruppe lo stampo [A natureza o fez, depois perdeu o molde]. Salve rio Itapecuru!
*Jornalista, outubro, 2007.
kyllmabandeira@uol.com.br
Era para ser apenas uma pauta, entre tantas outras. Colher o máximo de informações, escritas e visuais, sobre a história de um rio cuja vida parece resignada ao fim. Belas imagens das chagas que apressam o último suspiro, na evaporação da última gota. No entanto, seu tormento tornou-se minha vergonha secreta. E uma viagem sem volta começou e se estendeu além das fronteiras do que foi dito e estabelecido, pelo ofício. E sem roteiro, nem produção, fez-se uma história que tecnologia nenhuma jamais terá a sensibilidade de captar. Essa é a nossa história, do rio e eu.
Tão fácil falar dos flagelos impostos à natureza, seja no conforto do barulho de uma sala de redação, seja na tranqüilidade do jardim de nossas casas, seja na fogueira de vaidades dos intelectuais liberais numa mesa de bar. Tudo é notícia, que vende. Tudo é assunto para falsa erudição. Afinal, no mundo contemporâneo, o que nos preocupa agora, já não será o mesmo daqui a pouco. Porque como diz Ítalo Calvino, na vida prática, o tempo é uma riqueza de que somos avaros. Nesta viagem, sem perceber, levei uma rasteira da realidade. E não senti dor ao cair. Meus sentidos renunciaram de imediato à conivência do ócio em que me escondia, na desculpa de já fazer o suficiente com a caneta e o microfone na mão. Perseverei na renúncia com espírito inquieto e a sutileza de mãos de aço. E ganhei sem pedir um outro olhar, um outro sentir, sobre o teu sofrimento. Para mim já não és manchete, nem assunto de matéria jornalística. É vida que se esvai. E agora posso dizer, ilesa aos filtros da hipocrisia, que sofro contigo.
Da nascente à foz, te vi raso. Bancos de areia surgem no teu leito como nódulos. Pensam que te alimentam, mas te engasgam com lixo (latas de óleo, caixas de sabão, restos de alimento, fraldas descartáveis), esgotos (das casas ribeirinhas, das cidades e até de hospitais), vísceras, carcaças e sangue dos matadouros. Também sugam das tuas entranhas a areia para a construção civil ou para a criação de balneários. Queimam nas margens a vegetação, e te desnudam. E assim te condenam ao assoreamento. Estes assalariados de propósitos. Lavas animais vivos e carregas os mortos, como um cemitério flutuante. Haverá um dique contra essa enxurrada de violência? Concordo com Deleuze e Guattari quando dizem que tudo o que pedimos é um pouco de ordem para nos proteger do caos. Neste caso, nada é mais doloroso e decepcionante do que boa vontade desprovida de atitude.
Na tua extrema generosidade, há anos nos abastece. Em deferência, nem nos damos ao trabalho de conhecer a tua geografia. Eis que a barbárie voltou, a humanidade definha e se julga imputável aos excessos. Cospe no copo que bebe. Torna também o comer e o respirar em doença. Cadê o peixe que tava aqui? O homem matou! O rio secou e os poucos que restam mal alimentam os que deles vivem. Estes, os pescadores, de imediato sofrem, porque como disse Oscar Wilde “diferente do prazer, a dor não usa máscaras”. Sua agonia é indelével: nas mãos calejadas, no rosto vincado, na pele castigada pelo sol. Muito mais nos olhos tristes de quem não consegue nem um cambo de peixe após horas de pesca.
É hora de agir! Despir a toga, o terno, o blazer, a batina, a farda. Vamos nos atrever a renunciar ao “jugo dos sentidos e dos hábitos que reduz certezas em probabilidades”, segundo David Hume. Mas se ainda é preciso ver para crer, eis o convite: siga o curso do rio Itapecuru. O roteiro da degradação se estende da nascente à foz. Mas se a longa jornada não convém, visite apenas as cidades ribeirinhas: Mirador, Colinas, Caxias, Aldeias Altas, Codó, Coroatá, Pirapemas, Itapecuru e Rosário. Então não restará descrença. A missão da ação compartilhada está na responsabilidade de todos: poderes constituídos e comunidades. Pois a vontade é a base das realizações. E não nos é mais dado o luxo de esquecer o que o poeta Ariosto bem alertou nas palavras de Orlando Furioso: Lo fece natura, e poi ruppe lo stampo [A natureza o fez, depois perdeu o molde]. Salve rio Itapecuru!
*Jornalista, outubro, 2007.
kyllmabandeira@uol.com.br
Foto: Vista do Rio Itapecuru no Centro de Rosário-MA (arquivos do RN)
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